Comida de época: por que respeitar a sazonalidade dos alimentos
Considerado o mais alegre entre os concertos de As Quatro Estações, de Antonio Vivaldi (1678-1741), o outono foi composto a partir de um poema que celebra o sucesso da colheita, com direito a festa e dança.
Livros didáticos e pinturas antigas também costumavam trazer gravuras de árvores carregadas de frutos como ícones da estação do ano, que, no Brasil e em outros países do Hemisfério Sul, começa em março e vai até junho.
Um dos motivos por trás dessa representação secular está no ciclo de desenvolvimento de diversas espécies vegetais, que se inicia entre a primavera e o verão.
“Após a época das chuvas, em que as plantas obtêm água suficiente e uma boa quantidade de luz para realizar a fotossíntese, elas conseguem crescer e produzir”, explica a engenheira-agrônoma Juliana Maria de Oliveira, da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig).
Nessas condições favoráveis, é no outono que peras, maracujás e tantas outras frutas enfeitam os galhos, entregando, a quem os colher ou comprar, sabores, aromas, vitaminas, fibras…
Essa penca de atributos, inclusive nutricionais, está atrelada à sazonalidade, uma premissa cada vez mais defendida para quem quer cuidar de si e do planeta.
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Premissa que desponta como o novo mandamento da alimentação. Embora cardápios aclamados como a dieta mediterrânea já convidassem seus seguidores a incluir os produtos da safra, a ciência vem dar e atualizar argumentos para respeitar o tempo dos cultivos.
Boa parte deles está reunida no relatório da Comissão Eat-Lancet, criado em 2019 por um grupo internacional de pesquisadores, que estabelece um modelo alimentar baseado sobretudo em vegetais, enfatizando a preocupação e o cuidado tanto com a saúde da população quanto com a do meio ambiente.
“Os itens sazonais tendem a ser cultivados com menor quantidade de pesticidas e fertilizantes”, destaca a nutricionista Lara Natacci, Ph.D. pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) e uma das precursoras na difusão da chamada dieta planetária no Brasil.
Aliás, o melhor cenário é aquele em que se alinha o pico da colheita ao que é produzido localmente — ou mais próximo da sua casa.
“Além do frescor, esses alimentos não precisam viajar muitos quilômetros para chegar à mesa do consumidor, o que também ajuda a reduzir desperdícios na cadeia de produção”, justifica a nutricionista Aline Martins de Carvalho, professora da FSP-USP.
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Quanto menor a distância, menos emissão de carbono e de outros poluentes pelo trajeto. O planeta agradece. Tal proximidade ainda promove a valorização dos alimentos regionais.
E isso é extremamente positivo, na visão da nutricionista Suzana Camacho Lima, coordenadora da pós-graduação de Nutrição e Gastronomia do Senac EAD, que lembra que essas lições já se encontram no Guia Alimentar para a População Brasileira. “A ideia é fortalecer a culinária tradicional e a defesa da biodiversidade”, ressalta.
Nesse sentido, vale resgatar alimentos deixados de lado ou que caíram no esquecimento em detrimento de itens importados e modismos que pouco combinam com as nossas raízes culturais. Um papo que tem tudo a ver com diversidade e sazonalidade.
Uma das vantagens de seguir o calendário da natureza é dar um chega pra lá na monotonia à mesa, ampliando os itens e os preparos no cotidiano.
Um fenômeno visto com inúmeras ressalvas pelos especialistas é justamente a globalização e padronização da dieta, que faz com que muitos brasileiros hoje comam quase sempre a mesma coisa todo santo dia.
Pare para pensar: sua salada é sempre à base de alface e tomate? A escolha fica ao gosto do freguês, mas que tal picar uma fruta da estação para colorir a receita ou acrescentar outra folha disponível na feira que dá aquele toque crocante?
Opção é o que não falta. Com um bônus: a abundância da safra resulta em preços mais baixos na hora das compras.
Para uma boa colheita
Os fatores que influenciam no cultivo dos vegetais
- Clima
Das variações de temperatura à incidência de raios solares e da força dos ventos: tudo isso pesa após a semeadura. - Irrigação
Água na medida é essencial à produtividade, mas a quantidade vai depender da espécie ou da variedade plantada. - Controle de pragas
A escolha e o uso de defensivos devem seguir normas, evitando assim riscos à saúde e a contaminação do meio ambiente. - Solo
Além das condições do local da lavoura, preparar o solo, revolvendo a terra e cuidando da adubação, é item obrigatório. - Época
Como cada cultura tem suas particularidades, antes de começar o plantio é fundamental observar o calendário agrícola da região.
Acompanhar a ciranda da natureza ajuda a entender as razões do prestígio dos alimentos sazonais. No campo, durante as etapas de desenvolvimento, a planta conta com diversas estratégias de defesa.
Geralmente, o gosto do vegetal é mais azedo ou amargo nas fases em que as sementes ainda não estão totalmente prontas. Assim, predadores não se atrevem a devorá-lo, o que garante que grãos tão preciosos permaneçam bem guardados.
Diversos compostos, próprios de cada espécie, também são produzidos e blindam as plantas das variações do clima, do sol intenso e até de pragas. Muitos deles têm ação antioxidante, substâncias que neutralizam danos às células — as do vegetal e a de quem ingeri-lo depois.
É para combater tais prejuízos que a uva se enche desses componentes. As videiras suportam temperaturas baixas para que, lá na frente, seus frutos estejam plenos e, consumidos por pássaros e pequenos mamíferos, possam continuar disseminando a espécie.
“De modo geral, conforme se dá o amadurecimento do vegetal, ocorrem reações para atrair os animais capazes de ajudar a propagar a planta”, explica o engenheiro-agrônomo Leonardo Boiteux, pesquisador da Embrapa Hortaliças.
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Cores vibrantes, aromas deliciosos e configurações chamativas estão entre as formas de sedução. É um ganha-ganha: sementes são lançadas por aí, enquanto nós e outros bichos nos deliciamos com os frutos.
Com um trunfo adicional: aquele componente químico da uva que a protege a céu aberto pode estar lá na frutinha e vir a proteger a nossa saúde depois de comê-la.
Respeitar o tempo de plantio e maturação da planta traz vantagens ao futuro consumidor. Segundo uma análise recente, isso impacta a quantidade de fibras que o alimento irá fornecer.
Na banana madurinha, por exemplo, os pesquisadores observaram que amidos são decompostos em açúcares e há um aumento no teor de pectina, um tipo de fibra solúvel.
Já na maçã que está no ponto notou-se uma queda na quantidade dessa substância. Outra conclusão do trabalho é que a concentração fibrosa pode divergir de acordo com a variedade de uma mesma espécie, como acontece com a batata-doce.
Inclusive, essas diferenças de família também despontam na tabela da sazonalidade. Vejamos as laranjas. Enquanto a lima aparece mais no inverno e na primavera, a pera é abundante no verão.
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Nativa da Ásia, a laranjeira foi trazida para cá pelos portugueses e, faz tempo, ajuda a suprir nossa dose diária de refresco e vitamina C. Além da dupla mencionada, temos a laranja-baía e a laranja-seleta e tipos mais raros como a cara cara, que tem polpa vermelha. De modo que é possível encontrar ao menos algum membro do clã em cada uma das estações.
Assim como a turma cítrica se “naturalizou” brasileira e aqui adquiriu características para atender as demandas dos fregueses, outras espécies passaram por seleções e cruzamentos genéticos, favorecendo a adaptação ao solo e ao clima.
Tarefa árdua num país continental, cujas regiões apresentam um caminhão de particularidades. Ora, cultivar no Sul não é nada parecido com cultivar nos estados do Norte.
“Para que o alimento expresse todas as suas qualidades, o produtor precisa conhecer profundamente as características da espécie e do local de plantio”, afirma o engenheiro-agrônomo Jackson Mirellys Azevêdo Souza, professor da Universidade Federal de Viçosa (UFV).
Aos mais puristas, os ciclos sazonais devem ser seguidos com o mínimo de interferência humana, o que é quase impossível.
Lançar mão de técnicas de manejo, sejam as mais antigas ou aquelas que são fruto de tecnologia recente, traz um punhado de ganhos para quem cultiva e para o meio ambiente. Adubação, irrigação, poda… Tudo isso influencia no resultado.
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Uma questão mais controversa envolve o uso de agrotóxicos. Estudiosos ainda veem abuso em muita lavoura pelo Brasil, mas já observam uma maior consciência dos produtores e consumidores — daí a força dos orgânicos.
E cientistas têm se empenhado em desenvolver defensivos agrícolas menos tóxicos e nocivos ao homem, à fauna e à flora.
O emprego de micro-organismos que eliminam ervas daninhas pela raiz e soluções para controlar a presença de fungos sem contaminar o solo e o lençol freático são inovações que já viraram realidade.
Os entusiastas da sazonalidade garantem que alimentos de época são, além de gostosos, mais nutritivos.
Ok, faltam grandes estudos para dizer isso com todas as letras, porém faz sentido do ponto de vista teórico e já existem indícios corroborando a tese.
Um deles vem de uma pesquisa publicada no International Journal of Food Sciences and Nutrition: ela conclui que brócolis colhidos no tempo certo oferecem maiores teores de vitamina C quando comparados aos que foram retirados do solo precocemente.
É que brecar o amadurecimento interfere nas transformações que favorecem o acúmulo de fitoquímicos no vegetal — ruim para ele, ruim para a gente depois.
Mas, fora a pressa na colheita, outros deslizes patrocinam perda de qualidade e desperdício. “No pós-colheita, é essencial contar com boas embalagens e um armazenamento adequado, e o ideal é o mínimo de manuseio possível”, afirma a engenheira de alimentos Fabiane Camara, da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo, a Ceagesp.
Geralmente são usadas câmaras frias com temperatura e umidade rigorosamente controladas nessas etapas. O respeito ao sazonal também tem a ver com o zelo de quem planta.
A professora Aline, da USP, sugere que a gente se aproxime do produtor e se informe sobre o caminho trilhado desde a colheita. “Isso ajuda a gerar uma relação mais próxima com os alimentos e até reduzir desperdícios”, acredita.
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Já nas feiras livres, mercados e sacolões, ao escolher, tenha em mente que não é necessário apertar ou cutucar os vegetais.
“Basta examinar com delicadeza a aparência e sentir o cheiro”, ensina Suzana.
Em casa, atenção para a higienização correta. Retire as partes estragadas e machucadas. Lave em água corrente frutas e hortaliças, uma a uma, folha a folha, com auxílio de escovinha própria.
Deixe de molho por, pelo menos, dez minutos em solução de uma colher (sopa) de hipoclorito de sódio, a água sanitária (2 a 2,5% de cloro ativo), para 1 litro de água.
Depois é só enxaguar e secar bem antes de guardar na geladeira. Intercalar com papel-toalha é uma boa pedida. E esse mesmo roteiro deve ser destinado aos orgânicos — eles são livres de agrotóxicos, não de eventuais sujeiras.
Para desfrutar dos alimentos da temporada, planeje as compras e evite que itens fiquem esquecidos e apodreçam na cozinha.
Uma dica da nutricionista Alexandra de Oliveira, da Ceagesp, para garantir o consumo de frutas da safra por mais tempo é preparar geleias, compotas ou congelar polpas e fazer sucos e vitaminas na hora.
ÍNDICE DE DOENÇAS
Esse conselho vale ouro para quem curte frutas como a jabuticaba, que dá o ar de sua graça rapidinho no calendário. “Para evitar que os vegetais estraguem, procure facilitar o consumo. Por exemplo: já deixe o abacaxi descascado e picado na geladeira”, orienta Alexandra. Nos momentos de correria ou preguiça, ele estará lá, prontinho para você.
Outro conceito caro aos defensores da sazonalidade é o da substituição. Não é tempo de morango? Que tal outra fruta, até mesmo um ingrediente nativo da sua região.
A professora Suzana, do Senac, conta uma experiência formidável com um de seus alunos: o mineiro incrementou a tradicional receita de pão de queijo com cará-moela, um bulbo comum em Minas Gerais.
Para quem tem certo acanhamento com itens desconhecidos, uma sugestão é convidar a família ou os amigos e se lançar aos desafios culinários.
“Compre alimentos diferentes e se aventure na cozinha”, recomenda Aline, que coordena o Sustentarea, núcleo de extensão da USP que incentiva a alimentação sustentável e, entre outras coisas, dispõe de uma coleção de livros online com receitas sazonais.
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Lara Natacci, que também é culinarista, acrescenta à lista de estratégias a alternância dos modos de preparo.
“Vegetais ficam bem crus, cozidos, no vapor, assados, ensopados e, inclusive, na air fryer”, lista a colunista de VEJA SAÚDE.
Dá pra inovar até mesmo nos cortes. “Dependendo do alimento, você pode ralar, fatiar, moer, picar em pedaços grandes”, sugere.
Quanto às receitas, há uma infinidade, e elas casam perfeitamente com a tabela sazonal e as estações do ano. Sopas, caldos, risotos, assados e tortas ficam deliciosos com ingredientes abundantes no inverno, caso da batata-doce, do inhame e da mandioca. Dão aquele quentinho no estômago.
Já a temporada mais quente do ano pede a turma dos refrescantes abacaxi, melancia e goiaba. Sim, tem festa o ano inteiro para o paladar, digna de um fundo musical com os violinos de Vivaldi.
Safras transgênicas
Os alimentos geneticamente modificados podem driblar a sazonalidade. “Elaborados a partir da interação genética de espécies distintas, podem se tornar mais resistentes às mudanças de clima”, explica Daniela Bittencourt, pesquisadora da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia.
Isso dá mais controle sobre a safra e expande fronteiras, permitindo que espécies de clima frio como a soja se adaptem a regiões quentes.
Há quem critique o método por reduzir a biodiversidade. “Mas, desde o plantio da primeira planta transgênica, nos EUA em 1996, não há casos documentados de impacto negativo no ambiente”, diz Daniela.
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Cultivo na cidade grande
Já pensou em colher alface, rúcula, pimentão e morango em qualquer época do ano e em plena metrópole? Essa é a proposta das fazendas verticais, um sistema de cultivo feito em camadas e em ambientes fechados — assim ele não sofre os reveses do clima.
“Elas envolvem tecnologias com sensores ambientais, luz artificial e reaproveitamento de quase toda a água aplicada na irrigação”, explica o engenheiro-agrônomo Ítalo Guedes, coordenador de um projeto com essa solução na Embrapa.
Sem contar que não exigem uso de pesticidas. É uma aposta em metrópoles pelo mundo todo.