A China do nosso ressentimento autofágico









Para o Fernando Pereira Marques

Se o governo do Império do Meio seguisse uma política desfavorável, isso causaria pânico financeiro em Roma. (Advertência de Marco Túlio Cícero aos concidadãos, séc. I a.C)

O sucesso final de todas as nossas reformas dependerá da reforma do sistema político. (Deng Xiaoping)

A generalidade do que se escreve por aí sobre a China oscila entre o vazio substantivo, o ridículo e a irresponsabilidade, sempre num fundo de ignorância confrangedora, inveja e ressentimento autofágicos. E nisso se esgotam os comentários.

Quanto ao vazio, dou o exemplo de duas repetições ensurdecedoras, “o ditador Xi Jiping” e o povo oprimido, como aliás é patente nos milhares de turistas chineses que vemos nas nossas cidades, mas lá irei.

Quanto à ameaça da China, slogan também badalado até à exaustão sem se explicar em quê, a única ameaça é a da ignorância que queremos fazer dela e a mentira de crença que se espalha sobre a sua realidade e propósitos. Se nalguns casos negociámos mal com chineses (o que acontece nas trocas seja entre quem for) de quem é a responsabilidade? Deles ou nossa?





Quanto ao “ditador”,  a cada nova intervenção ou imagem dele, parece-me cada vez mais farto do papel a que é obrigado. O que deve apetecer-lhe é ir para casa e gozar a vida, viajar com a mulher, que até pode cantar ópera lá em casa.

Quanto ao ridículo, refiro a descoberta prodigiosa de um cronista meu vizinho cordial: os mais de 100 milhões de chineses que viajam anualmente para o estrangeiro – a China está agora também no top do ranking mundial da modalidade -, que gastam dinheiro, vão a Paris comprar Chanel, ao nosso Rosa e Teixeira, Prada e outros produtos caros, cerca de 1000 dólares americanos per capita, são todos… espiões daChina! E essa gente humilde das lojas de trezentos que timidamente, muito à chinesa, envergonhadamente por não dominarem a nossa língua, quase não falam connosco… todos espiões da China. Os chineses que se integram, pagam impostos e contribuem para o progresso do nosso país, que não exigem nada nem agridem ninguém, que enviam para as nossas escolas os filhos que singram e até se fazem logo sócios do Benfica, do Sporting e do Porto, que têm um comportamento social e cívico exemplar, esses que anualmente nos mostram e querem partilhar connosco com gosto e ingenuamente as suas tradições e alegria, todos espiões da China. É obra!

E ligo esse ridículo à irresponsabilidade que revela: terão estes brilhantes comentadores a mais ínfima noção do que significará para o mundo –  e para nós – uma travagem do desenvolvimento da China, desse sexto do mundo? Como Trump esbraceja para conseguir por todos os meios que inventa, até destruir uma cidade fluorescente, Hong Kong?*

Quando vivi em Macau nos anos 60, o território era lugar de asilo para um fluxo dramático de fugitivos da miséria que o maoismo conseguiu larvar ali paroxismo. Um dia, quis o acaso que um deles viesse parar ao meu aquartelamento na vertente de cá do monte contíguo ao Canal dos Patos, fronteira com a China. Um problema para o oficial de dia que eu era, pois as ordens nesse período eram entregar os refugiados à polícia para serem devolvidos ao continente.

Hoje, os Chineses viajam pelo mundo, gozam a paisagem, divertem-se com a diferença, aproveitam as férias, gastam dinheiro, e todos voltam a casa sem procurarem asilo político.

E somos nós também a visitar a China sem restrições e a contar que ali vimos surpreendidos o século XXI (devíamos também ver o melhor da China de sempre, que lá continua, mas isso exige preparação, que o turista habitual geralmente não pratica).

Não diz isto nada aos nossos argutos comentadores?

O regime chinês é de Partido único, autoritário e repressivo, mas não é a ditadura a que o reduzem e como a apresentam. Muito menos uma ditadura pessoal. A China não é um Estado pária, como o pintam. Tem leis, tribunais, procuradores e advogados. Imprensa, comunicação social e participação muito activa e eficaz da população em inúmeros registos da vida do país. Populações participativas, ouvidas e influentes em vários domínios, muito mais do que o somos nas nossas democracias. Um meio académico onde se discute tudo, as várias correntes filosóficas e políticas do Ocidente.

E há na China liberdade de expressão e de acesso à informação. No Weibo [rede social usada na China] pode-se  dizer o que se quiser,  mas realmente com uma linha vermelha que não é permitido ultrapassar: a contestação da autoridade do poder, que tem aliás o apoio esmagador de mais de 80% da população (Pew International). Ou algo que numa sociedade e com um governo muito preocupados com a moral pública, a protecção da família – força agregadora, modelo de tudo na China, também na política, que sem sabermos isso não se pode perceber -, dos velhos e das crianças, tudo o que seja considerado anti-social fora do interesse geral. Nesses casos é-se bloqueado. Acontece o mesmo no Facebook, não é? E até o Twitter denuncia as mentiras mais  descaradas de Trump.

E se alguém quiser criticar o Governo?  Depende da forma como o Governo é criticado. Se tentarem  fazer algo para agitar a sociedade ou subverter o Governo, ou incitar o público para que haja um sentimento de ódio, isso é reprimido. Tal como nos EUA: se alguém disser “Vou dar-te um tiro” terá o FBI à porta.

Os padrões na China são mais rigorosos e próprios, teriam sempre que ser num país de… 1400 milhões de pessoas! Teriam de sê-lo mesmo numa democracia como a nossa, que os Chineses não querem exactamente assim, que não está na sua tradição e os obrigaria a abdicar de exigências que preferem. (Claro que também lá há preferências para tudo. Pois não temos aqui partidos estalinistas na AR?)

E estamos sempre a ver na comunicação social internacional declarações e entrevistas críticas de cidadãos chineses, realizadores, autores, cientistas, por exemplo.

Se o regime não avança mais nas liberdades, isso deve-se ao cerco permanente de que é alvo do exterior. O cerco que, na prática, se traduz numa barragem à aspiração legítima dos chineses a uma vida melhor, promove o reforço das facções nacionalistas activas no regime, debilitando as forças que as contêm e empurrando o Governo para um endurecimento autoritário que o povo apoiará.

Ou julgarão os nossos iluminados comentadores que oposição, divergências, tendências e debate ideológico, ambições pessoais só há no Governo de António Costa, no PS e no PSD de Rui Rio, em Portugal?

A realidade, como acabo de a caracterizar, não poderia ser outra na segunda ou primeira maior economia do mundo, no país mais avançado em várias áreas da Ciência.

Apercebi-me há mais de trinta anos dessa China que viria e aí está, irreversível. Sabem como? Pela informação bibliográfica das grandes editoras internacionais que recebo. Em todos os livros, todas as novidades, de todas as áreas do conhecimento e da criação, a indicação imediata “Direitos adquiridos pela editora chinesa…”.  E pela qualificação em universidades chinesas e nas mais reputadas do Ocidente das cúpulas dirigentes do regime. O poder deixara há muito de estar “no cano da espingarda”. Como o quiseram alguns dos que acusam agora o regime chinês do que elogiaram no anterior.

Mas hoje não sou eu, o suspeito do costume, a afirmar – e tentar inutilmente explicar – que o regime chinês é uma ditadura de um Partido, mas selectiva. E é uma meritocracia. É o insuspeito Matt Ridley**, que por um feliz acaso ouvi no dia 11/6, numa entrevista transmitida pela RTP 3,  a explicar as condições da inovação e do progresso. E diz exactamente o que tenho dito. Transcrevo fragmentos:

A inovação não funciona quando é imposta de cima a baixo as novas tecnologias não se inventaram do nada. Para que isso aconteça é preciso haver uma troca de ideias. As pessoas precisam de se juntar e de trazer ideias, tecnologia, e apresentarem-nas uns aos outros (…).  Acho absolutamente vital que preservemos os benefícios da globalização, a possibilidade de uma ideia de Xangai se poder encontrar com uma de S. Francisco e terem, juntas, uma ideia-bebé em Londres, por exemplo. É assim que o mundo tem funcionado, que continuará a funcionar. Não iremos vencer esta pandemia se nos virarmos para dentro, se nos tornarmos auto-suficientes e olharmos apenas para nós. (…) Porque nos haveríamos de privar de produtos e serviços que são oferecidos noutros sítios? A única excepção que tenho a um comércio o mais livre possível é que seja de produtos saudáveis.

[P- “Por isso a inovação não acontece tanto em impérios… “] Sim, requer que as pessoas sejam livres. A inovação precisa de ter liberdade para se experimentar e investir, para mudarmos de ideias e direcções. É o que acontece se olharmos para as grandes empresas, um pouco como os grandes impérios se tornam anti-inovação conforme vão crescendo e se vão apoiando no produto que já criaram [foi assim que estagnou a China imperial a partir dos Qing***]. E resolvem isso, libertando um grupo de pensadores da empresa. Outras procuram fora. É o que é preciso para se ser bom em inovação. Ser livre para pensar livremente. É disso que precisamos.

[P – “Essa questão é  muito interessante porque não há dúvida que a  China está a inovar, e não apenas a apanhar o Ocidente mas pela primeira vez [desde a Revolução Industrial]  a ultrapássa-lo]…”

Em muito  do mundo digital  estão já muito à frente do Ocidente. E isso vale para a biotecnologia e para a inteligência artificial. Não há dúvida que a China conseguiu, mesmo num regime comunista e centralizado, tornar-se uma economia inovadora. [É que nunca foi, nunca pôde ser, nem no maoismo, tão centralizada como no Ocidente se pensa] Bom, a resposta é que tirando as questões políticas até são uma sociedade bastante livre. Desde que não se tente interferir no poder político do PC, não se está sujeito a regras e regulamentos preocupantes  [sublinhado meu, exactamente como venho dizendo] se se quiser criar um negócio ou um novo produto. Nesses registos há liberdade, mesmo que não haja no topo [na eleição no topo] da sociedade.

No entanto, considerando os mais recentes desenvolvimentos do regime, é claro que a China se está tornar mais dirigista e centralizada e se assim continuar vão matar “a galinha dos ovos de ouro”, fazer com que a China trave até certo ponto. Não imagino a China como líder da inovação durante muitos anos, a menos que se liberte culturalmente e politicamente, tal como fez em termos tecnológicos e de negócio.

É por isso, para não a deixar abrir, o cerco que lhe é feito. Mas não, a China não vai parar o projecto de “rejuvenescimento” sonhado antes de 1911 e há  muito desenhado e iniciado. Com o hiato dos anos de horror  de Mao, enlouquecido desde 1956, As Cem Flores, em que proclamou ter mandado executar 40 mil intelectuais, ultrapassando o tirano Qing, o seu ostentado modelo.  Tal como bem perceberam os grandes dirigentes patrióticos que o tinham acompanhado na libertação da China. Desde essa altura, a história política do regime deve ser vista como a tentativa sempre frustrada de afastar o monstro. Tentativas frustradas, porque era um estratega genial e tinha a adoração do povo por ter libertado a China do invasor.

Morreu em 1976 entre um eclipse e um terramoto, como lendariamente morriam os grandes imperadores. Veja-se o que aconteceu logo após a sua morte. Deng abriu uma janela de liberdade ao engenho e ao labor dos chineses e foi o “milagre” de desenvolvimento que aí está, de que o mundo beneficia. Que o regime chinês, com as desacelerações impostas  pelas circunstâncias da guerra que é feita à China, não parará. Até mesmo porque a sua sobrevivência no poder depende dele.

Não acredito que esqueça, que na China se esqueça, o programa legado por Deng: “O sucesso final de todas as nossas reformas dependerá da reforma do sistema político.”

* Ver o meu artigo no Sol  “Destruir Hong Kong, travar a China, liquidar a Europa”

** How Innovation Works: And Why It Flourishes in Freedom, sobre a fascinante história da inovação, dos post-it às vacinas

***Leia-se China 3.0, Gradiva/F. Gulbenkian, Lisboa, 1915

Manuel Rivas

Fernando Rivas. Compagino mis estudios superiores en ingeniería informática con colaboraciones en distintos medios digitales. Me encanta la el periodismo de investigación y disfruto elaborando contenidos de actualidad enfocados en mantener la atención del lector. Colabora con Noticias RTV de manera regular desde hace varios meses. Profesional incansable encargado de cubrir la actualidad social y de noticias del mundo. Si quieres seguirme este es mi... Perfil en Facebookhttps://www.facebook.com/manuel.rivasgonzalez.14 Email de contacto: fernando.rivas@noticiasrtv.com

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